As palavras por vezes são o embuste da verdade fáctica, daquela que se deseja como vivência real e verdadeira. A palavra é de longe o modil ardil da irresponsabilidade colectiva. Falamos nós de cidadania, e por todo o lado se apregoa a palavra. Resta saber se o conceito corresponde ao seu exercício efectivo.
Cidadania é, segundo as enciclopédias de acesso corrente aos inquietos, a qualidade de ser cidadão. Ser cidadão, na mesma fonte, é ser membro de um Estado considerado do ponto de vista dos seus deveres e dos seus direitos cívicos e políticos. A definição de conceito é basilar numa estrutura social de pluralidade de expressão. Desde o pensamento Grego se vem definindo de forma gerérica o conceito de cidadão e de cidadania como expressão de interdependência entre a vida da cidade e o sujeito que nela vive. O conceito toma contornos humanistas com o pensar Hebraico. A nova visão do mundo de matriz antropológico dá ao Homem o valor de ser em si pelo ser em devir, ou seja o Homem passa a ter e a ser o centro da meditação filosófica e a quem devem ser atribuido direitos e deveres, valores tidos como fundamentais. O Homem – Cidadão é o centro da decisão social e política. Em si encarna o dever – poder de autonomamente e em plena liberdade decidir da vida da cidade/estado.
Este é o embuste. Não na essência do conceito, mas no logro da sua utilização prática.
Eis-nos num tempo nacional de preparação à expressão plena de cidadania. De participação activa nos desígnios da vida da “cidade”, do Estado, da Nação.
Refiro-me pois ao período de análise, reflexão e discussão das condidaturas à Presidência da Républica. Presidente da República é um dos quatro orgãos de Soberania do Estado, soberania que segundo a Constituição da República Portuguesa reside no Povo. Soberania que segundo a Constituição se baseia na dignidade da pessoa humana, fazendo jus à velha tradição judaico cristã, pese que laicizada na senda da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Porém não se define Povo, contudo poder-se-á identificar tal como o conjunto de cidadãos, pessoas humanas a quem se lhes atribui dignidade humana e que, por tal, titulares de direitos e deveres, sendo que um dos seus direitos fundamentais será o de participar com cidadania nas opções e desígnios da vida publica do Estado. Direito ao qual corresponde colateral dever de exercício de cidadania, que no caso em concreto (escolha do Presidente da República) deverá ser exercido através do “...sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo...” (art.10º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
A questão poderá parecer simples, haverá lugar à eleição do Presidente da República através do voto secreto, eleição que todos ouvimos referir como expressão cabal de um direito e dever de cidadania. Direito que se quer por fundamental num respeito constitucional aos principio da “ universalidade” e da “autonomia”. Acto civico que se pretende exercido em pleno respeito pelo direito de igualdade na participação na vida pública (art.48º da Constituição) e o direito de igualdade de sufrágio (art.10º da Constituição). A considerarmos o princípio geral da igualdade como um direito fundamental de eficácia directa dos direitos, liberdades e garantias podendo ser visualizado como garantia acrescida de protecção contra discriminações estruturais. Princípio que indica o caminho da responsabilidade colectiva dos titulares de poder social, que no tocante ao direito/ dever de sufrágio se pretende estruturante de uma real e verdadeira consciência decisional individual. Consciência que cujo sumatório de individualidades será a expressão da decisão livre do Povo. Eis-nos pois perante o processo de criação de vontade consentida, livre e esclarecida de um Povo Soberano.
A soberania do Povo só terá valor se consentida, sendo que a esta liberdade decisional é basilar o processo de expressão informativa. Em concreto no actual panorama parece-me que será de ponderar os procedimentos efectivos subjacentes à informação circulante em pleno respeitado pelo direito constitucional à informação. Todos têm direito de informar, a serem informados e de se informarem, sem impedimentos nem descriminação. A livre manifestação de vontade de quem é Povo e por tal detentor do direito de exercício de poder político, de participação na vida pública do Estado e na definição dos seus desígnios só será possível se devidamente informado, se não impedido de informar ou se não impedido de se informar. A informação massificada, tem-se limitado a ser expressão de uns para uns negligênciando os outros que são parte integrante do pulsar colectivo. As regras são universais, todos os cidadãos maiores de dezoito anos e com capacidade decisional podem e devem votar. Resta é saber sobre que votar. Resta saber se a informação necessária à decisão é igualitária e não descriminatória. Esta poderá levantar questões de legitimidade dos resultados sufragados. Como legitimar um sufrágio quando o mesmo carece de plena liberdade decisional? Quem são efectivamente os cidadãos que exercem plenamente os seus direitos e deveres cívicos?
Parece-me desde logo estar a falhar a informação fornecida. Sente-se, por reivindicado o direito a informar, a ser informado e a obter informação. Deficit de informação sentido em moldes gerais no cidadão participativo, mas plenamente desconhecedor. O princípio da igualdade é compaginável com o da não descriminação entre cidadãos.
Qual é o custo de participação na vida pública de quem tem deficiência? A deficiência a que me reporto não é aquela que provém de um déficit estrutural de conhecimento que leva ao não entendimento dos conteúdos linguísticos de quem se apresenta eleitoralmente. Assistimos a debates públicos audiovisuais entre alguns dos candidatos que se propõem à Presidencia da República e em nenhum deles houve, até à data, preocupação com o cidadão deficiente auditivo. A este não foi facultado o acesso à informação em tempo real, não teve a possibilidade de conhecer da informação de debate ao nível dos demais cidadãos. Pese exista uma linguagem própria alternativa à oralidade, esta em regra não se encontra presente nos meios de comunicação. Efectivamente estas são pessoas humanas portadoras da mesma dignidade dos demais, fazem parte do mesmo povo e terão tal como os demais cidadãos o direito/dever de sufragar o futuro Presidente da República. A Declaração Universal dos Direitos do Homem determina no seu art. 2º que ninguém deve ser descriminado por qualquer tipo de situação, nestes termos a Constituição determina que os cidadãos portadores de deficiências físicas gozam de plenos direitos e deveres constitucionais, presumindo-se entre eles o de sufragio. Numa dedução lógica serão estes chamados a sufragar o futuro Presidente da República. A questão está em saber se são em igualdade de circunstâncias com os cidadãos não portadores de deficiência física detentores de igual oportunidade. A informação é caso flagrante. Não se entende como é possível sujeitar os cidadãos portadores de surdez a uma limitada informação ou a uma informação que não é transmitida em tempo real sendo-o quase sempre em horas de repouso. Estes tal como os cidadãos portadores de outras defeciências fisicas motoras não estão excluidos, pelo menos legalmente, dos direitos e deveres de cidadania. Contudo as barreiras são muitas. O cidadão cego pode não ter limitação no acesso à informação oral, mas certamente se confronta com a questão de voto, tal como o deficiente motor se confronta com as barreiras físicas das escolas em que usualmente são colocadas as mesas de voto.
O cidadão portador de diferença física como cidadão activo com capacidade de exercício integral dos seus direitos cívicos e políticos vê a sua trajectória à livre expressão, conhecimento e liberdade de decisão reduzida.
Não acredito que caminhemos para uma era Aristotélica na qual só uns no meio dos demais tinham estatuto de cidadãos activos nas lides e desígnios da Nação. Acredito que a caminhada para um Estado de Direito é tarefa que implica cautelas e de todos aduz responsabilidades. O Estado somos nós e a nós cabe a responsabilidade de zelar pela nossa liberdade decisional individual garante da soberania colectiva. Se a cidadania for apenas um amontuado de palavras e lexicos toda a vontade sufragada sofrerá irremediávelmente de desvio de verdade. É na busca da declaração de vontade livre e esclarecida do Povo que se legitimam os sufrágios e seus resultados. A legitimidade vem de uma real consciência colectiva de autodeterminação como garante à democracia plural tal almejada.
1 comentários:
Excelente.Parabéns
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